quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Ter parceiro único pode se tornar coisa do passado

Psicanalista Regina Navarro Lins: "Desde a pílula, o sexo se dissociou
da procriação e se aliou ao prazer"

Regina Navarro Lins é psicanalista, escritora e autora de dez livros.
Especializada em sexualidade - e com ideias que geram controvérsia até
entre seus colegas de profissão -, ela concedeu uma entrevista
exclusiva ao UOL Estilo Comportamento sobre os seus dois novos livros:
“A Cama na Rede – O que os brasileiros pensam sobre amor e sexo” e “Se
eu fosse você...- Uma reflexão sobre as experiências amorosas”
(Editora Best Seller). Ambos são baseados na pesquisa que ela fez
durante nove anos no seu site, que esteve no ar de 2000 a 2009. O
lançamento dos livros acontece nesta quinta (25), às 19h, na Livraria
da Travessa do Shopping Leblon, no Rio de Janeiro, onde a autora
participa de um debate sobre relacionamento amoroso e sessão de
autógrafos.

UOL Estilo Comportamento - Os livros que estão sendo lançados reúnem
material de seu site, um pioneiro no gênero. Como os internautas do
início da década reagiam às questões íntimas colocadas na rede? Era
diferente de hoje? A abertura foi imediata?

Regina Navarro Lins - Estamos no meio de um processo de profunda
mudança das mentalidades que se iniciou nas décadas de 1960/197070,
com o advento da pílula anticoncepcional e todos os movimentos de
contracultura do período. As mudanças são graduais. Em 2000, quando o
site entrou no ar, as pessoas já eram bem mais livres do que nas
décadas anteriores. Embora alguns placares sejam surpreendentes: por
exemplo, o da pergunta “Você gostaria de fazer sexo a três?”, que eu
imaginei que muitas pessoas responderiam sim, mas nunca pensei que o
percentual chegasse a 77%. O anonimato facilita dizer o que se deseja
e não se tem coragem de revelar aos outros. Nos últimos anos, mais
casais passaram a frequentar casas de swing, onde fazem sexo com mais
de uma pessoa.

Essa nova realidade – das novas tecnologias de comunicação - está
mudando os relacionamentos?

Acredito que sim. Os relacionamentos virtuais estão contribuindo para
a tendência de se amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Quando
alguém está num chat conversando, ou fazendo sexo, pode trocar de
parceiro com muita facilidade. São apenas dois cliques no teclado. É
claro que não é só isso; existem outros fatores.

Quais são eles?

O amor romântico, pelo qual a maioria de homens e mulheres do Ocidente
tanto anseiam se caracteriza pela idealização do outro e traz a ideia
de que você tem de encontrar alguém que te complete, sua alma gêmea.
Esse tipo de amor prega a fusão total entre os amantes e a ideia de
que os dois se transformarão num só. Agora, a busca da individualidade
caracteriza a época em que vivemos; nunca homens e mulheres se
aventuraram com tanta coragem em busca de novas descobertas, só que,
desta vez, para dentro de si mesmos. Cada um quer saber quais são suas
possibilidades, desenvolver seu potencial. O amor romântico propõe o
oposto disso, na medida em que prega a fusão de duas pessoas. Ele
então começa a deixar de ser sedutor. Um amor baseado na amizade e no
companheirismo está surgindo. Haverá menos idealização e você vai
poder perceber melhor o outro. O amor romântico está saindo de cena e
levando com ele a sua principal característica: a exigência de
exclusividade. Sem a ideia de encontrar alguém que te complete,
abre-se um espaço para outros tipos de relacionamento, com a
possibilidade de se amar mais de uma pessoa de cada vez, ou seja, o
poliamor.


"Sem a ideia da alma gêmea, abre-se espaço para outros tipos de
relacionamento, como o poliamor", diz a psicanalista

No livro “A Cama na Rede”, você faz 50 perguntas e as pessoas
respondem “sim” ou “não”, além de relatarem o que pensam. No final,
você comenta as respostas. No comentário sobre a questão da
fidelidade, você diz: “Alguns não concordam com a ideia de posse, que
é a tônica da maioria das relações estáveis. Para eles, a fidelidade
está no sentimento recíproco que nutrem e nas razões que sustentam a
própria vida a dois. Mas isso não tem nada a ver com ter ou não
relações sexuais com outra pessoa.” A quantas anda a fidelidade, que é
tão cobrada entre os casais?

Os relacionamentos virtuais estão contribuindo para a tendência de se
amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo
De uma maneira geral, numa relação estável, as cobranças de
“fidelidade” são constantes e é natural sua aceitação. Severa
vigilância é exercida sobre os parceiros. Isso não adianta muito, já
que, na realidade, todos são afetados por estímulos sexuais novos,
vindos de outras pessoas que não os parceiros fixos. Esses estímulos
existem e não podem ser eliminados. Mas o medo de ficar sozinho é
tanto que é difícil encontrar quem reivindique privacidade e tenha
maturidade emocional para aceitar que o desejo por outras pessoas,
assim como a relação com elas, é absolutamente natural.

Qual foi o percentual de pessoas infiéis que você encontrou na sua pesquisa?

Nesta questão, 72% disseram que já foram infiéis e explicaram suas
razões. Apesar de todos os ensinamentos que recebemos desde que
nascemos – família, escola, amigos, religião – que nos estimulam a
investir nossa energia sexual em uma única pessoa, a prática é bem
diferente. Mas na maioria das vezes, é escondido. Como eu disse na
pergunta anterior, o amor que conhecemos começa a sair de cena,
levando com ele a idealização do par romântico, com a ideia de os dois
se transformarem num só. A exigência de exclusividade, que daí se
origina, começa a perder a importância. Acredito que num futuro
próximo seremos mais livres para dar vazão aos nossos desejos e
teremos plenas possibilidades de viver sem culpas. Talvez seja
possível ter relações estáveis com várias pessoas ao mesmo tempo,
escolhendo-as pelas afinidades. Quem sabe uma para ir ao cinema e
teatro, outra para conversar, outra para viajar, uma parceria especial
para o sexo, e assim por diante? A ideia de que um parceiro único deva
satisfazer todos os aspectos da vida tem grandes chances de se tornar
coisa do passado.

Você encontra, na sua área, profissionais que pensam como você?

Não. Existiram dois, que infelizmente já faleceram, Roberto Freire e
José Ângelo Gaiarsa. Os profissionais que tratam das relações amorosas
me impressionam. Pesquisando o que pensam sobre as motivações que
levam a uma relação extraconjugal na nossa cultura, fiquei bastante
surpresa. As mais diversas justificativas apontam sempre para
problemas emocionais, insatisfação ou infelicidade na vida a dois. Não
li em lugar algum o que me parece mais óbvio: embora haja insatisfação
na maioria dos casamentos, as relações extraconjugais ocorrem,
principalmente, porque as pessoas gostam de variar. O casamento pode
ser plenamente satisfatório, do ponto de vista afetivo e sexual, e
mesmo assim as pessoas terem relações extraconjugais. Penso que está
mais do que na hora de se refletir sobre a questão da exclusividade.
Essa é a maior preocupação das pessoas, mas ninguém deveria ser
cobrado por isso. Em vez de nos preocuparmos se nosso parceiro (a)
transou com outra pessoa, deveríamos apenas responder a duas
perguntas: “Me sinto amado (a)? Me sinto desejado (a)? Se a resposta
for positiva, ótimo. O que o outro faz quando não está comigo não é da
minha conta, não me diz respeito. Não tenho dúvida que assim as
pessoas viveriam muito melhor.

O amor romântico está saindo de cena e levando com ele a sua principal
característica: a exigência de exclusividade
No livro há a questão: “Ciúme faz parte do amor? Qual foi a pior cena
de ciúme que você já fez?”. E 56% responderam que “sim”. Há relatos de
quem não consegue se controlar e também de quem acredita que ciúme em
pequenas doses faz bem. O que você pensa sobre o ciúme?

Não concordo que o ciúme faça parte do amor. As pessoas foram
condicionadas a acreditar nisso. É comum encontrarmos pessoas que
sentem muito ciúme mesmo sem amar o outro. Não é fácil lidar com o
ciúme, porque o adulto aprendeu a viver o amor de um modo que é, em
quase todos os aspectos, semelhante à forma da relação amorosa vivida
com a mãe pela criança pequena. Por se sentir constantemente ameaçada
de perder esse amor — sem o qual perde o referencial na vida e também
fica vulnerável à morte física — a criança se mostra controladora,
possessiva e ciumenta, desejando a mãe só para si. Quando surge uma
relação amorosa, os adultos passam de uma dependência para outra.
Assim, é por intermédio da pessoa amada que se tenta satisfazer as
necessidades infantis. Reeditando a mesma forma primária de vínculo
com a mãe, o antigo medo infantil de ser abandonado reaparece e a
pessoa amada se torna imprescindível. Não se pode correr o risco de
perdê-la. O controle, a possessividade e o ciúme passam, então, a
fazer parte da relação.

É possível se deixar de sentir ciúme?

Penso que sim. Independentemente da forma como o ciúme se apresente —
discreto ou exagerado —, ele é sempre tirano e limitador. Não só para
quem ele é dirigido, mas também para quem o sente. Quando a pessoa
consegue elaborar bem a dependência infantil e também se libertar da
submissão aos valores morais, percebe-se menos ciumenta. Caso
contrário, é difícil ter autonomia suficiente, e podem reaparecer as
antigas inseguranças, com exigência de exclusividade no amor. Como são
poucos os que se sentem autônomos, observa-se uma busca generalizada
por vínculos amorosos que permitam aprisionar o parceiro, mesmo à
custa da própria limitação. A questão do ciúme também está ligada à
imagem que cada um faz de si. Quem tem a autoestima elevada e se
considera interessante e com muitos atrativos não supõe que será
trocado com facilidade. E se tiver desenvolvido a capacidade de ficar
bem sozinho, sem depender de uma relação amorosa, melhor ainda. Pode
até sofrer em caso de separação, mas tem certeza de que vai continuar
vivendo sem desmoronar.

Em “A Cama na Rede”, quando você pergunta se com o tempo o tesão pelo
parceiro (a) diminui, 72% respondem que “sim”. Um internauta colocou a
seguinte questão: “Tenho 28 anos, sou casado há cinco, e estou
preocupado com o meu relacionamento, pois minha esposa anda meio fria,
sem apetite sexual. Não me procura mais e quando estou a fim ela nem
dá bola. Eu acho que ela não tem amante, mas temos um filho de dois
anos. O que faço?” Esse é um problema comum no casamento?

É muito comum. Costumo dizer que o casamento é onde menos se faz sexo.
Muitas mulheres amam seus maridos, não conseguem imaginar a vida sem
eles, gostam de ficar abraçadas, bem junto, fazendo carinho. Só não
sentem desejo sexual algum. Algumas se esforçam para que o desejo
volte a existir: fazem promessas, vão a motéis, organizam viagens de
fim de semana para lugares bucólicos, abrem um champanhe. Mas não tem
jeito. Desejo não se força, existe ou não.

E por que o tesão acaba no casamento?

Existem os motivos sempre alegados: excessiva intimidade, excessiva
familiaridade. Mas acredito que o principal motivo é pouco falado: a
exigência de exclusividade. No casamento, é comum as pessoas se
tornarem emocionalmente dependentes um do outro. Para se sentirem
seguras, elas exigem exclusividade, controlam a vida do (a) parceiro
(a). A questão é que a certeza de posse e exclusividade leva ao
desinteresse, por eliminar a sedução e a conquista.

O que fazer quando o tesão acaba?

Durante muitos séculos o sexo foi considerado abominável. Afinal,
controlar o prazer das pessoas é controlar as pessoas
Essa é uma questão séria, principalmente para os que acreditam ser
importante manter o casamento. As soluções são variadas: alguns fazem
sexo sem vontade, só para manter a relação, outros optam por continuar
juntos, vivendo como irmãos, como se sexo não existisse, e ainda
existem aqueles que passam anos se torturando por não aceitar se
separar nem viver sem sexo. Penso que a única forma de mudar essa
situação que atinge tantos casais é reformular as expectativas que são
criadas a respeito da vida a dois, como as ideias de que os dois vão
se transformar num só, que quem ama não faz sexo com mais ninguém, e
outras tantas mentiras criadas para aprisionar as pessoas e tornar a
vida delas bastante insatisfatória.

No novo livro há relatos bem interessantes de pessoas que foram
trocadas por outro (a). O percentual dos que viveram essa experiência
chega a 72%. É muito difícil se recuperar depois disso? Quando alguém
é trocado por outro numa relação amorosa, o sofrimento é intenso e é
difícil elaborar essa perda. A falta da pessoa amada provoca uma
sensação de vazio e desamparo. Se o parceiro prefere outra pessoa para
viver ao seu lado, quem é excluído se sente profundamente
desvalorizado, com a autoestima bastante abalada. É comum numa
situação de rejeição serem reeditadas inconscientemente todas as
rejeições sofridas desde a infância, exacerbando a dor do momento. Sem
que se perceba, chora-se naquela perda todas as outras anteriores. Mas
ser trocado por outro não significa que se é inferior. Em muitos
casos, a troca ocorre porque a pessoa, objeto da nova paixão, possui
algum aspecto que satisfaz inconscientemente uma exigência momentânea
do outro, sem haver uma vinculação necessária com o parceiro
rejeitado.

“Existe algo no sexo que você gostaria de experimentar? O quê?” Essa
questão teve 95% de “sim”, no livro “A Cama na Rede”. A maioria das
pessoas vai morrer sem satisfazer seus desejos sexuais?

Durante muitos séculos o sexo foi considerado abominável. Afinal,
controlar o prazer das pessoas é controlar as pessoas. Encontramos
ainda muita gente com inibições, censuras e tabus. As pessoas sofrem
com seus desejos, fantasias, culpas, medos, vergonha... Quantos
desejos são reprimidos por fugirem do padrão estabelecido? Mas as
mentalidades estão mudando. Desde a pílula, o sexo se dissociou da
procriação e se aliou ao prazer. E as pessoas passaram a desenvolver
cada vez mais o prazer sexual.

No livro “Se eu fosse você...”, há narrativas de mulheres preocupadas
com desejos não convencionais dos parceiros, como a estimulação anal.
A homossexualidade é um fantasma nas relações?

A estimulação anal é muito excitante para homens e mulheres, que mesmo
sem penetração muitas vezes se toca nessa área durante o ato sexual.
Mas são poucos os homens que não se retraem quando a mulher tenta
introduzir o dedo ou apenas acariciar seu ânus. O pavor de se
imaginarem homossexuais faz com que percam a oportunidade de
experimentar uma nova sensação de prazer. Ter prazer com a estimulação
do ânus não significa absolutamente homossexualidade, que se
caracteriza pela escolha do objeto de amor — uma pessoa do mesmo sexo
— e nunca pela área do corpo que proporciona prazer.

Você está escrevendo o seu 11º livro, “O Livro do Amor”, há quatro
anos, e será lançado no final de 2011. Como você aborda o amor nesta
obra?

O amor e o sexo estão entre as principais causas do sofrimento humano,
obviamente excluindo a miséria e a doença. Todos os outros livros que
escrevi tratam de relacionamento amoroso, mas senti necessidade de
aprofundar o tema. Neste livro, faço uma grande viagem. Começo na
pré-história e sigo por Grécia, Roma, Antiguidade Tardia, Idade Média,
Renascença, Iluminismo, século XIX, século XX e atualidade. Aponto
também as tendências para o futuro. Fiz uma grande pesquisa. O amor é
uma construção social, e em cada época se apresenta de uma forma. Isso
significa que pode mudar completamente daqui em diante também. Neste
momento, os padrões tradicionais de comportamento não estão dando mais
respostas. Não tendo mais modelos para se apoiar, abre-se a
possibilidade de cada um escolher sua forma de viver. Penso que a
leitura do livro contribuirá para a mudança das mentalidades, para que
as pessoas possam viver com mais prazer.